domingo, 11 de setembro de 2011

Faces

Depois que finalizei o projeto com os índios da comunidade Pankararé, que vivem no sertão brasileiro, me voltei para os povos das águas. Desde 2007, venho documentando pescadores, marisqueiras, agricultores, mestiços, brancos e negros, e nesse envolvimento com as comunidades ribeirinhas, cheguei aos quilombolas da Barra e do Bananal, duas pequenas comunidades de negros, descendentes de escravos que fugiram de um navio negreiro naufragado na costa sul da Bahia, e que vivem desde o século XVII às margens do Rio Brumado, no município de Rio de Contas, na Chapada Diamantina, no Estado da Bahia.
É importante saber que existem classificadas 724 comunidades remanescentes de quilombos no país, totalizando mais de 2 milhões de pessoas, distribuídas em 30,6 milhões de hectares de terras. Terras que não necessariamente lhes pertencem, apesar da ocupação secular. E como as comunidades não possuem certificados de propriedade, ficam à margem, não podendo, por exemplo, pedir empréstimo em banco para plantar. 
Desde 1998, o governo vem conferindo a essas comunidades títulos que atestem a descendência de antigos quilombos e passando, para as mãos dos atuais moradores, as terras em definitivo. Até agora, 18 comunidades (Barra e Bananal são duas destas) receberam seus títulos, faltando 706.
Meu envolvimento com essas comunidades sempre foi o de um documentarista. Fotografo suas danças, seu trabalho, seu lazer e as demais facetas da vida. Ao ser contratado pela Secretaria de Promoção da Igualdade do Estado da Bahia (Sepromi), que me solicitou imagens que revelassem a ligação das atuais comunidades quilombolas com sua cultura ancestral, foi que percebi como a ancestralidade está diluída em maneirismos, costumes e até mesmo com outra religião da que era seguida por seus antecessores.
Foi bastante curioso estar em um lugar, entre pessoas que eu já havia fotografado, procurando entender, através de outro olhar, aspectos relevantes da cultura ancestral que resistiram a séculos de violências.
"Nossos pais contavam histórias de sofrimento, da época da escravidão. Mas, não queríamos ouvir as coisas dos mais velhos porque achávamos que era caduquice. Aí eles morreram, e a gente, que não soube aproveitar, perdeu isso para sempre”. Nas palavras de Dona Claudina Silva, 91 anos, uma das moradoras mais antiga da comunidade, o testamento de um povo.
Diante desse quadro de quase apagamento da memória, a solução foi buscar na simplicidade do retrato a essência de toda a ancestralidade distante. Eu já havia feito alguns retratos da comunidade, e mantínhamos uma relação de respeito e carinho, o que contribuiu, e muito, para uma maior entrega durante a sessão das fotos que estão aqui expostas.
Montamos um pequeno estúdio na casa de Dona Joanita, mulher sorridente, moradora do Bananal e entusiasta do projeto. Usamos um pano preto ao fundo, o qual descontextualizou as pessoas, criando-lhes a sensação de desaparecimento de si mesmas, fazendo assim, uma alusão a distante ancestralidade.
Foram dois dias de trabalho. No começo as pessoas resistiram, mas depois de verem as fotos umas das outras, a emoção tomou conta do pequeno espaço que dividíamos com os móveis da sala. A tensão inicial deu lugar a risos e a deliciosos comentários sobre as suas faces.
Apresentado os primeiros resultados, algumas pessoas se surpreenderam com a própria imagem, o que me leva a crer que elas não se olham ou não se veem. Uma senhora negra de olhos claros, já tinha ouvido falar da cor dos seus olhos, mas não tinha certeza de como eles são. Neste momento, decidi colocar de lado a Pentax 6x7 que usaria e lancei mão de um equipamento digital. A cumplicidade, que conseguimos estabelecer, mais que justifica essa decisão. As pessoas fizeram fila para serem fotografadas.
Com uma identidade cultural bastante rarefeita, o que resta da própria ancestralidade desse povo é a força das suas faces.  Os retratos aqui apresentados seguem uma estrutura de trabalho que sugere uma metáfora de um povo e sua cultura, que tendem a desaparecer, ou se reinventarem, só restando uma memória distante.














O Projeto Faces foi selecionado pelo Photo España 2011 para participar da exposição coletiva PESO y LEVEDAD, que reuniu o olhar de 15 fotógrafos latino americanos no Instituto Cervantes em Madrid, de junho a setembro. Em seguida,  a mostra itinerante será apresentada nas principais sedes do Instituto Cervantes pelo mundo.

Acessem os links: 



Matéria publicada no jornal A Tarde de Salvador/BA
                                                         

2 comentários:

  1. Adoro esse trabalho! Acho que pelo fato de ter tido a oportunidade de te acompanhar, em alguns desses momentos, de ter estado nos bastidores e pertinho dessa gente enquanto tudo acontecia. PARABÉNS!!

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  2. Obrigado, Elen!! Sua participação foi muito importante!

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